A janela do mundo é a tela do computador | Carlos Piazza Timo 

 

EA – Quem melhor explicaria a tempestade da pandemia: Freud, Darwin ou Platão?  
Piazza Seres humanos são os únicos seres vivos no planeta que podem imaginar algo que nunca aconteceu e, por essa razão, pensam em sua própria finitude. Quando algo absurdamente impensável acontece, como a pandemia de Covid-19 que estamos vivendo, perdemos algumas coisas. Entre elas, a confiança no outro, não há certificado imune e isso persistirá. As garantias, nem da vida se tem mais, fora questões de trabalho, emprego, renda.  

Perdemos as rotinas e vivemos uma desaceleração do tempo perturbadora. Não está apontado na pergunta, mas eu ficaria com Arthur Schopenhauer: “em geral, nove décimos de nossa felicidade baseiam-se exclusivamente na saúde. Com ela, tudo se transforma em prazer”.            

“Considero a pandemia como um freio de arrumação. Vivíamos tempos pré-pandemia que não faziam muito sentido, uma corrida contra o tempo, ambientes cegamente competitivos. Em muitos casos, com problemas éticos, pessoas precisando de algo que não sabiam definir, uma insanidade no ar. Um ritmo insano de oito voos por semana, vida de aeroporto, deslocamentos absurdos para aplicação de uma hora de palestra, ou quatro horas de um curso”.

EA – A pandemia trará evolução no contexto do trabalho?  
Piazza Certamente. Está acontecendo algo que há dez anos eu falava, e que as pessoas estranhavam: a questão do nomadismo digital. Com a pandemia, o trabalhar deixou de ser um lugar. A densidade digital que se tem hoje permite que se possa trabalhar em qualquer tempo, em qualquer lugar, sob qualquer formato. Há claro, um choque quando se coloca colaboradores e seus líderes trabalhando de forma remota. Há ainda uma preferência absurda por um estilo de liderança, daqueles que preferem ter seus subordinados à vista para comandar e controlar.  

No home office, as pessoas estão relativamente livres. Elas estão entendendo que não há lógica em ser criativo das 9 às 18 horas, pode-se ser criativo em outros horários, inclusive quando as crianças dormem, os animais domésticos demandam menos, na madrugada, a produtividade experimentada dá conta de mais de 20% de incremento, como reflete um grupo de gestores de RH em São Paulo. 

“No mundo digital, a teoria do Tech&Touch nos trouxe a aceleração da percepção que pessoas são indivisíveis. O trabalho pode ser tech agora, mas as pessoas são touch, portanto, elas trabalharão de qualquer lugar, poderão, acima de tudo, serem requeridas pelo mundo todo”.

EA – Nomandismo digital é bem nosso tempo. 
Piazza Sim. O nomadismo se coloca na incrível mudança que pode ser vista agora, você trabalha de onde está. Há também muita gente voltando para seus locais de origem, a premissa é se ter internet somente. Então, uma pessoa do interior do Mato Grosso do Sul poderá trabalhar em uma empresa de Singapura, uma big tech, em qualquer lugar do planeta.  

O trabalho vai à pessoa, não mais a pessoa vai ao emprego. Trabalho e emprego são coisas diferentes. Ganha força trabalho por empreitada, em regime de colaboração intensa, onde a influência, a autoridade e a maturidade contam muito. Vivemos já a maior transição laboral desde a primeira revolução industrial, com certeza. 

EA – O trabalho home office aprimorará habilidades profissionais?  
Piazza Um dos reflexos já observados na pandemia é o fato de que a produtividade subiu muito, as pessoas trabalham com melhor equilíbrio entre vida pessoal e funcional e, além de tudo, ainda têm o aprendizado no mesmo espaço de casa. As pessoas entenderam que o aumento da produtividade deriva de uma atenção maior quanto à organização do trabalho, ele é mais fluido, não há derivativos e aparece com força total a colaboração.  

“Melhor, as pessoas estão mais empáticas, com saudades do contato humano, então pode-se dizer que, quando puderem sair do isolamento, elas enxergarão o outro com mais empatia, com mais cuidado, aceitando melhor as diferenças e a colaboração.” 

EA – No contexto consumidor-produto, como fica isso?  
Piazza Desde os anos 90, houve a inversão no vetor de marketing, são as pessoas que compram, não mais as empresas que vendem. O ambiente de negócios tem sofrido mutações definitivas quanto a isso. No meu entender, as relações serão de trabalho, não de emprego. Haverá muito trabalho, talvez menos emprego. Empresas e pessoas se juntam para criar valor, mas sem a obrigatoriedade de se ter um corpo físico fixo.  

Eu acredito até ser já improvável que empresas com corpo de especialistas fixos estejam realmente preparadas para enfrentar os desafios do mundo VUCA (Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo), do mundo ressignificante, exponencial, que demandará convergência homem/máquina. 

EA – O trabalho remoto precisará de lideranças? 
Piazza No meu entender, sim, mas não da liderança existente, cheias de relações doentias, da necessidade de produção a qualquer preço, líderes panópticos, que insistem em vigiar os colaboradores, que adoram comandar e controlar, que afogam a criatividade, que transformam as pessoas em um robô de tarefas repetitivas. Na convergência homem/máquina, precisamos das contribuições prioritárias dos seres humanos, análise da ambiguidade e pensamento crítico, capacidades inegavelmente humanas, que as máquinas não conseguem fazer, mas as empresas insistem em usar seres humanos como base de tarefas repetitivas, que, pelo comando/controle, as transformam em máquinas de fazer, mas não de pensar. 

“Líderes atrapalham especialmente em determinadas condições. Por esses motivos, haverá necessidade de liderança distribuída, não focada no comando/controle. Saem os líderes, entram os mentores e tutores de jornada”. 

EA – Com a transformação digital há ritos a se preservar na cultura organizacional?  
Piazza Do ponto de vista da governança, sim, a questão de se ter claro de que o propósito é uma das coisas mais delicadas que se tem hoje para conectar pessoas e sociedade na forma de prestação de serviços. Há a questão muito forte de se entender que a chamada sociedade 5.0 pressupõe uso de tecnologias no centro para a melhoria de vida das pessoas. Há uma nova ordem, em tempos exponenciais, a ética no relacionamento. Na forma de fazer, deve prevalecer uma dialética precisa entre o que se diz e se faz.  

Em tempos de protagonismo elevado e radical, não há nenhum lugar seguro para que as empresas se escondam, tudo é visível, tudo é arbitrado, tudo é ponderado em tempo real.  

Em tempos de buzz marketing, compreender que há uma nova ordem na forma de se consumir propostas de valor está nas mãos das pessoas, não mais das empresas. Portanto, conceitos de sustentabilidade, de responsabilidade social discricionária, de ética interativa devem ser tomadas em conta urgentemente. 

Em que o robô será melhor em entregas do que o trabalhador humano? 
Piazza Tudo que depender de capacidade de cálculo e simulação, as máquinas serão cada vez melhores que os humanos, batem a incrível marca de 200 quatrilhões de cálculos por segundo, é óbvio que o ser humano não conseguirá atingir uma marca como essa.  

“Máquinas são melhores em automação, ganham de longe na velocidade com que são capazes de fazer simulação e, como chama a autora Martha Gabriel, a natureza é a razão pura, então há o ganho na análise de grandes volumes de dados.” 

 

carlos piazza - A janela do mundo é a tela do computador

Carlos Piazza é um homem com o pensamento sempre à frente e um estudioso do futuro do trabalho. Fundador da CPC, empresa focada em negócios digitais e em temas como disrupção, aceleração digital e seus impactos na sociedade, 5ª revolução industrial, sociedade 5.0, gestão da inovação e Life 3.0. Incansável em sua visão de futuro, é também Embaixador do Teach the Future no Brasil, TED Talker e foi membro do comitê de Inovação e de Sustentabilidade do IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. 

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