Por Patricia Gonçalves Tenório
Comece procurando na biblioteca e tomando nas mãos o livro que você comprou em 2018 para a disciplina de Amílcar Bettega no doutorado em Escrita Criativa da PUC-RS.
(Pergunte-se por que demorou tanto a lê-lo e observe que as páginas do livro estão se soltando, como se fosse uma revolta natural das palavras pelo seu esquecimento.)
Responda a si que era preciso um tempo de decantação para mergulhar pela primeira vez no universo fantástico e inusitado do escritor argentino Júlio Cortázar.
(Não basta responder ao tempo de decantação. É preciso entender por que ler Histórias de cronópios e de famas antes de O jogo da amarelinha, do mesmo autor.)
Observe que O jogo da amarelinha é um romance para o qual deve se preparar, apesar de poder ser lido de inúmeras maneiras, apesar de Histórias de cronópios e de famas também precisar ser lido após preparação, decantação, silêncio.
Tome o livro nas mãos, mesmo com as páginas se destacando à medida que o lê.
Observe que as “Histórias de cronópios e de famas” só começam na página 91, quase no fim do livro, após “Manual de instruções”, “Estranhas ocupações” e “Matéria plástica”.
Anote no diário ou no caderno de anotações frases que poderá usar na escrita desta resenha, a começar pela busca da epígrafe:
“A tarefa de amolecer diariamente o tijolo” (Pág. 3).
Ou mesmo:
“Negar tudo o que o hábito lambe até dar-lhe uma suavidade satisfatória” (Pág. 3).
Mas ainda não.
Observe a escrita de Histórias como se fossem exercícios de desbloqueio de Cortázar, que se pode escrever sobre absolutamente tudo e com humor.
Encare o tempo – ou a fuga do tempo – nas “Instruções para dar corda no relógio”. “Lá no fundo” do relógio “está a morte, mas não tenha medo”, pois “agora se abre outro prazo” e “o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo” (Pág. 17).
Tente entender nas “Estranhas ocupações” por que “pousar o tigre tem algo de encontro total, de alienação perante o absoluto” (Pág. 37), e… Encontre a epígrafe desta resenha!
Por exemplo, as palavras, não há dia em que não as encere, as escove, as coloque na prateleira exata, as prepare e enfeite para suas obrigações cotidianas. (Cortázar, Pág. 47)
Assuste-se com a profecia de “Fim do mundo do fim” em “Matéria plástica”, pois prova aquela sua intuição (e sua angústia) do “que estou escrevendo agora serve para alguma coisa?” Ou será que “como os escribas continuarão, os poucos leitores que no mundo havia vão mudar de profissão e adotar também a de escriba” (Pág.60)
No entanto, para que servem as palavras, a leitura, a escrita, se ninguém mais lê, se todos escrevem, mesmo que de maneira não refletida?
“Mas as coisas invisíveis precisam encarnar-se, as ideias caem no chão como pombas mortas” (Pág. 67) …
… me responde Cortázar. E acrescenta:
“E todos foram apodrecendo, o tirano, o homem e os generais e ministros, mas os gritos ressoavam de vez em quando pelas esquinas” (Pág. 88).
Finalmente: famas, cronópios, esperanças. As criaturas de Cortázar são apresentadas em um sábado pela manhã a quem escreve esta resenha. Os perfis físicos e psicológicos são traçados perante os acontecimentos, de maneira indireta. Na leitura voraz do sábado pela manhã.
Essas histórias podem ser lidas como metáforas, ou como um novo modo de pensar, uma nova estrutura mental.
Então.
Vem a fome. A vontade desesperada de escrever mais uma resenha. Mesmo que não seja lida por alguém. Mesmo que não faça sentido para ninguém. As palavras foram lidas, e polidas, e decantadas, para virem à tona, brilhantes e salvadoras para quem escreve, da madrugada desta segunda-feira até o início da manhã.
Crônica escrita pela autora, na cidade do Recife, em 01/07/2024, das 03h57 às 05h50.
[1] Histórias de cronópios e de famas, de Júlio Cortázar.
Tradução: Gloria Rodríguez. 12ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
Patricia Tenório é escritora, tem trinta livros publicados, sendo um dos pontos mais notáveis sua habilidade de criar personagens complexos e profundamente humanos, cujas jornadas ressoam com o leitor muito além das páginas do livro. Seus enredos são ricos em detalhes e matizes, muitas vezes incorporando elementos da cultura nordestina brasileira de forma autêntica e evocativa. Tenório também é reconhecida por sua prosa lírica e envolvente, que cativa o leitor desde a primeira página. Ao longo de sua carreira, Patricia Tenório recebeu diversos prêmios e honrarias por sua contribuição para a literatura brasileira, consolidando seu lugar como uma das vozes mais importantes e originais de sua geração. Sua obra inspira e encanta leitores em todo o mundo, é seu legado duradouro no cenário literário contemporâneo. Como autora na EA, inaugura uma nova categoria em nossa comunidade, Ensaio.
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