A história de uma lenda editorial e seus clássicos | Jiro Takahashi

Especial para a EA Magazine

 

Em termos de carreira, meu sonho da juventude era ser médico, talvez tocado pelo câncer de que meu pai sofria desde seus 35 anos. Quando ele faleceu aos 39 anos, nossas possibilidades de carreiras se reduziram drasticamente. Eu e meus irmãos mudamos para Marília para trabalhar. Como, na época, jogávamos tênis de mesa, isso ajudou em nosso primeiro emprego porque a fábrica que nos empregou estimulava a contratação de funcionários atletas.

Quando passei no concurso para o Banco do Brasil, nos mudamos para São Paulo. Depois de passar no vestibular para Direito, vivi um período de intensa agitação cultural e política dentro e fora da faculdade. Cheguei a participar ativamente da famosa greve de Osasco em 1968.

Como trabalhava meio período no banco, no outro período, passei a datilografar na recém-fundada Editora Ática.

Os proprietários eram amigos do meu tio professor. Fui colaborando cada vez mais na editora, com datilografia de originais, auxílio nas revisões, redação de pequenos textos. Depois, trabalhei revisando, preparando, finalmente editando os livros. Assim estou, desde então, imerso no mundo dos livros.

Cenário editorial da época

No final dos anos 1960, a Ática havia lançado uma coleção de clássicos brasileiros e portugueses, a Série Bom Livro. Ela tinha surgido com dois cuidados, à primeira vista, não tão relevantes: o texto integral e uma ficha de leitura. Na época, cotejando as edições dos clássicos, percebemos que algumas não apresentavam o texto integral. Quanto à inserção da ficha de leitura, era uma forma de atender os estudantes de literatura, que tinham de fazer o fichamento quase sempre solicitado por professores.

O modelo foi um sucesso muito grande para uma pequena editora que era a Ática na época. Cada livro da série vendia por volta de 30 mil exemplares por ano.

Em 1969, entrei também na faculdade de Letras na USP. No ano seguinte, fui aprovado em um concurso para professor na Escola Senai. Passei a ter uma experiência maravilhosa no magistério. Mas continuava também colaborando com a Ática.

Em 1971, uma reforma de ensino, que veio com a Lei 5692/71, impactou o cotidiano das escolas brasileiras.

Um dos efeitos da lei foi a obrigatoriedade de os estudantes permanecerem na escola até a 8ª série. Antes, a obrigatoriedade se restringia até à 4ª série. Com isso, dois problemas, entre outros, puderam ser detectados imediatamente. Como eu já vivia esse ambiente escolar por dentro, isso era facilmente notado. O primeiro ponto foi que o número de alunos praticamente havia dobrado em quantidade. Outro ponto foi a falta de condições dos governos de formar professores em quantidade suficiente para atender esse dobro de turmas nas escolas.

Dentro de sala de aula, eu sentia dificuldades em atrair os jovens para a literatura. Quando eles se queixavam dos livros que constavam das bibliografias recomendadas, fui detectando novos livros, novos autores, que os próprios estudantes iam descobrindo entre eles. Além disso, percebia alunos lendo muitos quadrinhos e fazendo palavras cruzadas, caça-palavras, charadas, etc. Todo esse contexto, naturalmente, era percebido por muitos colegas meus também.

Nasce a série Vaga-lume

Isso fez com que a Ática pensasse em uma nova série para um público mais jovem do que o que lia a série dos velhos clássicos. Foi o embrião da série Vaga-lume. Até um office-boy da editora já havia sugerido que a editora publicasse autores contemporâneos para jovens.

Fizemos o projeto dessa série, convocando alguns professores para nos auxiliar na prospecção dos títulos e autores, além de contarmos com os divulgadores da editora que visitavam as escolas. Pedíamos que eles ficassem atentos aos livros que os professores estavam indicando. Para engajar o público interno da editora, foi feito um concurso para o nome da coleção.

Foi nesse concurso que nasceu o nome Vaga-lume, uma sugestão de um grupo de divulgadores. Também fizemos um concurso em nível nacional para o projeto gráfico da coleção. O projeto vencedor foi do grande diretor de arte Ary Normanha.

A série foi lançada em janeiro de 1973. Seus mais de 100 títulos ultrapassou oito milhões de exemplares vendidos até 2021. Um único título chegou a vender 120 mil exemplares.

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Série Vaga-lume, títulos que encantaram multidões de leitores

Elaborei um protótipo do Suplemento de Trabalho, que iria substituir as antigas fichas de leitura, muito “burocráticas” para os novos tempos. Cada título teria seu Suplemento de Trabalho, que deveria ser mais lúdico do que avaliativo. Esse conceito nem sempre foi entendido por muitos colegas. No Suplemento, na hora de se pedir um resumo do enredo para o leitor, pedíamos que ele escrevesse legendas para a história em quadrinhos. Outras atividades eram sempre lúdicas, com charadas, palavras cruzadas, etc.

Soubemos, pelos professores, que muitos alunos procuravam ler rapidamente o livro para poder solucionar as brincadeiras que havia no Suplemento. Até o oitavo título da série, eu mesmo elaborava o Suplemento. Depois, uma colega, Carmen Lúcia, passou a se responsabilizar pelo Suplemento.

Hoje fico muito feliz em dizer que ela é uma conhecida autora de livros infanto-juvenis.

Na prospecção dos títulos, várias vezes, fizemos pesquisas com professores e alunos em diversas escolas. Depois de um tempo, para viabilizar uma pesquisa mais abrangente, passamos a pedir antes uma sinopse do livro aos autores. Com ela, podíamos colocá-la nas mãos de uns três mil estudantes. Enfim, era um número comparável às grandes pesquisas que se fazem até hoje.

Tudo isso foi diminuindo os riscos de uma surpresa desagradável na aceitação dos livros. As primeiras edições da série foram de 60 mil exemplares. Chegamos a aumentar a tiragem inicial gradativamente até chegar aos 120 mil exemplares, que foi a tiragem da primeira edição de O mistério do cinco estrelas, do escritor Marcos Rey, no início dos anos 1980.

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Série Vaga-lume, títulos chegaram a vender 120 mil exemplares

Série cinquentona

Internamente, praticamente não tivemos obstáculos. Em muitas empresas, os proprietários relutam muito quando surgem algumas ideias um pouco mais ousadas. O engajamento interno na Ática foi praticamente total. Tão grande que, uns 4 anos depois do lançamento da Vaga-lume, ainda criamos a coleção Para Gostar de Ler, que teve os 4 primeiros anos de desempenho ainda melhor. O primeiro volume da nova série chegou a vender quase 300 mil exemplares no primeiro ano.

O único obstáculo que tivemos de enfrentar, dentro da editora, foi depois do sucesso inicial. Como tudo andava muito bem, havia correntes dentro da editora que defendiam a publicação de muito mais títulos para aproveitar o sucesso. Sempre justifiquei a grande venda dos títulos a nosso cuidado em não congestionar o nosso próprio mercado.

Ainda seria preciso um estudo mais atento, mas, à primeira vista, me parece que a redução das tiragens dos livros da série coincide com o aumento da oferta de títulos. Enfim, para mim, isso é apenas um palpite, já não estava lá para ter condições de levantar os dados e analisar melhor.

Deixei o grupo Ática um ano após o falecimento do sócio majoritário e fundador da Ática, prof. Anderson Fernandes Dias, a quem devo todo o fundamento do meu trabalho editorial. Mas a Ática continuou muito tempo editando a série com novos excelentes autores. A editora foi vendida algumas vezes e, dependendo da direção, ora a série era descontinuada, como se diz hoje, ora era retomada.

Nesse vaivém, a série Vaga-lume vai chegar cinquentenária em 2023. Isso não é para qualquer série. Eu me lembro de ter acompanhado meio de perto a celebração da Penguin, na Inglaterra, quando sua série de bolso chegou aos 60 anos em 1995. Por isso, com um pequeno empurrão a mais, a Vaga-lume também chega lá.

 

foto certa - A história de uma lenda editorial e seus clássicos
Jiro Takahashi está no mercado editorial desde 1966. Foi diretor editorial da Ática, onde iniciou sua carreira, ficou lá por 25 anos e criou as icônicas séries Vaga-lume e Para Gostar de Ler. Trabalhou na Abril Educação, Nova Fronteira, Editora do Brasil, Ediouro, Rocco e Global (Nova Aguilar). É antes de tudo, um educador. Mestre em Linguística e Semiótica (USP), foi professor em várias faculdades, entre elas, Ibero-Americana de Letras, Universidade do Livro e FECAP. Hoje, aos 72 anos, é professor de Letras na FAM e consultor editorial na Zapt Editora.

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Foto: Sérgio Caddah

 

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