Por Thierry Cintra Marcondes

 

Nos anos 2000, quando eu morava na Inglaterra, uma simples ligação internacional era quase um evento familiar. Meu pai pegava o telefone fixo, olhava no relógio e dizia: “Vamos ligar pro vovô.” Naquela época, falar da Inglaterra para a Brasil custava quase 5 libras esterlinas por cinco minutos — algo como 80 a 100 reais hoje se considerarmos a inflação e a variação cambial. Era um luxo. E por isso, antes de discar, vinha toda uma preparação: o que dizer, quem ia falar primeiro, o que era mais importante.

Para mim e meu irmão, muitas vezes a conversa se resumia a:
— “Vovô tudo bem? Estamos bem na escola, estamos tirando boas notas. Te amo, estamos com saudades.” E só.

Era o suficiente. Mas aquilo também mostrava o quanto a comunicação era limitada pelo custo e pela infraestrutura. Hoje, essa realidade mudou drasticamente.

De ligações caras a mensagens instantâneas gratuitas

Segundo dados da Statista, em 2023, existiam mais de 6 bilhões de usuários ativos de smartphones no mundo. Isso significa que mais de 75% da população global tem acesso a aplicativos de mensagem como WhatsApp, Telegram ou Signal — ferramentas que permitem enviar textos, áudios, vídeos e até fazer chamadas internacionais por praticamente zero custo adicional.

Se compararmos com os anos 2000, onde uma ligação de cinco minutos entre continentes, podia consumir parte do salário de um mês, hoje é possível manter contato constante com pessoas em qualquer lugar do mundo: Brasil, Inglaterra, Moçambique, Índia, Japão.

Tudo com poucos megabytes de internet.

Isso não é apenas conveniência.
É acessibilidade.
É inclusão digital.
É desenvolvimento.

A autonomia nasceu no celular

Para mim, que sou surdo, essa revolução foi libertadora e inclusive para a maioria das deficiências.

Até pouco tempo, marcar uma consulta médica significava pedir ajuda para ligar ao consultório. Minha mãe sempre foi minha voz nesses momentos e como mãe protetora, ela ligava e fazia questão de ir comigo ao médico. Ela descrevia minhas dores, marcava horários, lembrava dos exames.

Hoje eu não sei como falar sozinho com o médico, isso me criou uma certa dependência.

E tudo mudou.
Consigo marcar consultas pelo app do plano de saúde.
Posso reagendar uma consulta com dois toques.
Até pedir pizza sozinho virou conquista.

Mas ainda há muito chão pela frente.

Empresas aéreas que não têm chatbots funcionais, a maioria dos cegos reclama na hora de comprar uma passagem área e, surdos, como eu, precisam ligar e falar no telefone. Se tivesse pelo menos videochamada, algumas companhias como LATAM foram reconhecidas pela ANAC por terem implementados Libras nos atendimentos via ICOM.

Bancos que exigem ligação ou visita presencial. Cartões de crédito cujo atendimento digital é confuso ou inexistente, já sofri golpe (tema para outro artigo) por não conseguir conversar bem ao telefone.

A tecnologia avança rápido, mas muitas instituições seguem lentas.
Fatores que criam barreiras invisíveis para quem depende da tecnologia para viver com independência.

Inovação nasceu da necessidade

Muitas das grandes inovações digitais surgiram justamente da necessidade de incluir.
O texto preditivo veio da comunicação assistiva.
Os assistentes de voz vieram da demanda por interfaces acessíveis.
As legendas automáticas vieram da luta por inclusão auditiva.

E conforme essas tecnologias se popularizaram, beneficiaram a todos — deficientes e não deficientes. Foi o que o designer Victor Papanek chamou de design universal: soluções criadas para minorias que acabam servindo à maioria.

O futuro está no toque do dedo

Quando penso no caminho percorrido desde aquelas ligações caras nos anos 90 até as videochamadas grátis de hoje, percebo que a comunicação evoluiu, sim. Mas o verdadeiro salto foi outro: o da autonomia e segurança.

Ela não veio com a tecnologia em si.
Veio com a acessibilidade incorporada nela.

E enquanto houver quem precise de um botão maior, de uma voz clara, de uma legenda precisa, a tecnologia continuará evoluindo — e melhorando a vida de todos nós.

 

Thierry - Ligações caras e mensagens grátis: Um caminho para a acessibilidade”

Thierry Cintra Marcondes é especialista em inovação, acessibilidade e impacto, com experiência em futurismo, tendências e desenvolvimento de tecnologias. Professor convidado na Fundação Dom Cabral, atua em cursos para executivos com foco em ESG e Inovação. Conselheiro em empresas e ONGs, é engenheiro mecânico (Unicamp) e fundador das startups Evolucar e Ávitus. Liderou programas de Acessibilidade na Accenture e Indústria 4.0 na L’Oréal, com vasta experiência em lançar produtos e promover acessibilidade como estratégia de negócio. Defende a inclusão dos surdos como catalisadores de novas tecnologias. Colunista EA “Vida acessível”.

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